Cruz e Souza: O cisne negro da literatura gótica no Brasil
João da Cruz e Souza
Entre os figurões da nossa literatura, não é incomum encontrar sobrenomes que carregam uma grande herança. Nomes que, de certa forma, representam muito mais que a identificação de um ser, mas nos contam uma história. E essa história, muitas vezes, é regada de privilégios alcançados através dos diversos sacrilégios sob os outros.
João da Cruz e Souza nasceu sem esse nome. Filho de escravizados, um bebê que foi alforriado pela lei do ventre livre e adotado por aqueles que abusaram de seus pais durante toda a vida. João viveu pela arte e literatura, e utilizou do seu talento para gritar o que precisava ser dito, oque precisava ser ouvido.
A sua escrita simbolista regada de temas mórbidos, místicos, tabus, representam de forma perfeita o que ele mesmo sentia perante os problemas que enfrentava em vida. Todo o seu trabalho foi um manifesto de rebeldia, ele explorou os mais profundos sentimentos e fez questão de trazer a público de maneira visceral.
E por isso foi negado a entrar na academia brasileira de letras, que seguia os dogmas parnasianos na época. A sociedade não estava pronta para entender Cruz e Souza. Ou talvez estivesse, mas fosse estupidamente mais fácil negar que existia um homem negro, um artista, representando um movimento marginalizado no Brasil e no mundo, como foi o simbolismo.
O simbolismo parece ser, na realidade, uma escrita gótica sinestésica. Porque o que são as subculturas senão uma forma de expressão daqueles que são oprimidos e julgados como imorais e ilegítimos ao direito da vida? Dito isto, temos duas certezas: Cruz e Souza o fazia muito bem, mas era um problema para a Academia.
"Livre! Ser livre da matéria escrava,
arrancar os grilhões que nos flagelam
e livre penetrar nos Dons que selam
a alma e lhe emprestam toda a etérea lava.
Livre da humana, da terrestre brava
dos corações daninhos que regelam,
quando os nossos sentidos se rebelam
contra a Infâmia bifronte que deprava. [...]"
Poema "Livre", Cruz e Souza, data desconhecida.
O pseudônimo de Cisne Negro definitivamente não foi escolhido por ele atoa. Era um um homem inteligentíssimo, dotado de uma coragem e muito, muito amor para dar. Era um romântico subversivo. Um terno sofredor. Dotado de uma sensibilidade circense. Amou sua esposa como divindade e dela cuidou mesmo quando sua saúde infelizmente definhou-se. Escreveu para ela, para a doença dela, e para o medo que sentia dela o trocar pela morte.
Poema "A noiva da Agonia", Cruz e Souza, publicado em Broquéis (1893).
Mas nem toda a negligência do mundo pode apagar o ser artista.
João da Cruz e Souza é um nome que aparece para assombrar todos aqueles que insistem em viver sob a falsa racionalidade, aqueles que se negam a sentir o próprio obscuro, aqueles que não são capazes de enxergar beleza no que não se propõe a ser belo. Essa é a sua herança, maior que qualquer riqueza material, esse é o seu legado eterno.
Mariana OliveiraCabo frio, 23/07/2024
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